terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A POLÊMICA DO DIFAL

Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio  dia  18 / 1 / 2022 - A441
Artigos publicados   

Nos países desenvolvidos, tributo sobre consumo é cobrado sobre consumo; no Brasil, não. Por exemplo, quando uma empresa amazonense vende para outra empresa maranhense, somente um terço do ICMS é tributo sobre consumo; o restante é, digamos, imposto sobre operação interestadual, que não existe formalmente, mas acontece na prática. Sobre a questão da competência arrecadatória, podemos tomar como referência o ICMS do frete, que é devido no local de embarque da mercadoria; ou então o ISS, que cabe ao município onde o serviço é prestado. Há também o caso emblemático de gasolina e diesel, cujo ICMS fica inteiramente no local de consumo. A pacificação dessas questões envolvendo frete, ISS e combustíveis servem de paradigma para o ICMS em geral. Pois bem. Pelo andar da carruagem, isso nunca vai ser pacificado; vamos ficar eternamente nos debatendo feito cobra na areia quente.

Com relação às vendas interestaduais para pessoa física, é bom lembrar que até o ano de 2015 a coisa era totalmente virada pelo avesso, visto que a alínea b do inciso VIII do artigo 155 da CF garantia a integralidade do ICMS para o estado remetente, deixando a UF de destino chupando dedo. Desse modo, o ICMS não tinha nada a ver com tributo sobre consumo. Houve um tempo em que tal deformidade jurídica não chegou a ser tão impactante ao erário estadual pela baixa frequência desse tipo de operação. Ocorre, que o comércio eletrônico produziu um sangramento expressivo a diversos erários estaduais, já que muita gente trocou a loja convencional pela internet. Alguns Estados tentaram, por meio do Protocolo ICMS 21/2011, repartir o imposto entre remetente e destinatário. O problema é que utilizaram um instrumento inadequado para tal. Por consequência, o STF decidiu pela inconstitucionalidade, uma vez que o instrumento apropriado seria uma emenda constitucional. ADI 4628/DF e ADI 4713/DF, Rel. Min. Luiz Fux; RE 680089/SE, Rel. Min. Gilmar Mendes.

Em 2015, a EC87 corrigiu a grave deformidade jurídica que tanto prejudicava os Estados consumidores, garantindo assim a partilha do ICMS entre UF de origem e de destino. Foi resolvido um problema e criado outro porque utilizou-se do Convênio 93 para regulamentar a EC87, sendo que o correto seria uma lei complementar. Por esse motivo, nasceu ali uma discussão jurídica que acabou em fevereiro de 2021: O STF decidiu ser inconstitucional a cobrança de diferencial de alíquota do ICMS estabelecida por ato administrativo. Para ser válido, o diferencial deveria ser fixado por lei complementar, uma vez que a alínea a do inciso III do artigo 146 da CF diz que cabe à lei complementar definir tributos e suas espécies, bem como bases de cálculo e contribuintes. Resumindo, o STF declarou inconstitucional a cobrança do Difal, mas, por conta de segurança jurídica ou de interesse social, modulou os efeitos somente a partir de 2022 (artigo 27 da Lei 9.868/99). Trocando em miúdos, a cobrança do Difal foi ilegal de 2016 até 2021, mas os Estados não serão obrigados devolver o que foi cobrado ilegalmente, exceto para os contribuintes que ajuizaram uma ação. E que só poderia haver continuidade da cobrança de Difal a partir de 2022, com publicação de lei complementar em 2021 (RE 1.287.019 e ADIn 5469).

Para cumprir a decisão do STF, o PLP 32/21 foi aprovado em meados de dezembro do ano passado, o qual gerou a LC190, que foi publicada somente em 5/1/22. Nasceu aí, mais um imbróglio jurídico, que se consubstancia na violação do princípio da anterioridade anual (CF, artigo 150, III, b). Diversos juristas afirmam que a cobrança só é válida a partir de 2023, enquanto as secretarias de fazenda estaduais discordam dessa interpretação. A Sefaz insiste na tese de que lei complementar não institui imposto; que apenas estabelece regras gerais nacionais. O que institui imposto são as leis estaduais. No caso do Amazonas, a lei que instituiu o Difal foi a LC156/2015. Por isso, não deve ser invocada a anterioridade anual ou mesmo a noventena. Na opinião da Sefaz, a publicação da LC190 valida a LC156, mas não cabe observância do princípio da anterioridade anual nem da noventena. Isso não é verdade, uma vez que a juíza de Direito Luiza Barros Rozas Verotti, da 13ª vara de Fazenda Pública de SP, afastou o recolhimento do Difal ICMS em 2022 que beneficiou uma multinacional do ramo alimentício. Leia a sentença em https://bit.ly/3GEeaA0 . Também, a Sefaz evoca o precedente do julgamento do STF envolvendo a EC33/2001, cuja regulamentação por lei complementar nacional aconteceu depois de os Estados normatizarem a cobrança. Nesse caso, o STF deu ganho de causa para os Estados.

CONTINUAÇÃO ===

Mesmo não admitindo necessidade de observância da noventena, a Sefaz/AM vai começar a cobrar Difal somente a partir de 5/4/2022, indicando assim, que reconhece o princípio da anterioridade nonagesimal. Segundo o advogado tributarista, Doutor Eduardo Correa da Silva  https://bit.ly/3FIeFYI , a noventena está amarrada à anterioridade anual, uma vez que no final da redação da alínea c do inciso III do artigo 150 da CF, consta a expressão “observado o disposto na alínea b”, indicando assim, que o cumprimento de uma alínea, leva ao cumprimento da outra. Portanto, as Fazendas estaduais não podem cumprir a noventena e ao mesmo tempo descumprir a anterioridade anual. Também, merece atenção a disposição do artigo 3 da LC190 que manda observar o princípio da noventena, mesmo que isso não seja matéria de lei complementar. Poder-se-ia entender que essa determinação contém de modo implícito, a observância da anterioridade anual. O problema é que várias UF editaram leis sobre o Difal muito antes da aprovação da LC190, cujas datas de vigência colidem com as disposições da LC190. Outra coisa: Se o legislador nacional, dentro da LC190, cuidou de incluir no artigo 3 o princípio da anterioridade, podemos partir da premissa que, para o legislador federal, houve, sim, instituição do Difal. Por esse motivo, vale a anterioridade plena. O próprio senador Jaques Wagner, quando discutia as exposições de motivos sobre o tema, afirmou que deve ser aplicada a anterioridade plena (nonagesimal mais a do exercício seguinte na sua potência máxima).

Segundo o Doutor Eduardo, o ideal seria aprovar, lá, em agosto/2021, o projeto de lei e rapidamente o presidente sancionar, justamente, para que a cobrança acontecesse legalmente no início de janeiro/2022. Mas o nosso legislador não gosta de normalidade (tem que ter forte doses de emoção). O Doutor Eduardo questiona ainda se as leis estaduais publicadas antes da LC190 se prestam a alguma coisa ou se são leis imprestáveis, já que não tinham fundamento em lei complementar federal na época das suas edições.

Pois bem. Considerando toda essa celeuma em torno do Difal, e também a preocupação exagerada de muitos profissionais da contabilidade, temos a dizer que esse assunto só cabe, praticamente, às empresas de comércio eletrônico que movimentam cifras substanciais em operações interestaduais com destinatário não contribuinte. A orientação que os advogados devem dar aos seus clientes é que avaliem o montante de Difal pago durante o último ano para verificar se cabe impetração de mandado de segurança para afastar essa obrigação. Até mesmo porque, segundo o advogado tributarista, Doutor Sergio Vieira @vieirasergio, é preciso impetrar Mandado de Segurança para cada Estado que se deseja evitar a cobrança, já que cada Fazenda estadual é autoridade coatora na ação. Mas o Doutor Sergio enfatiza que há grande probabilidade de resultado satisfatório em tempo relativamente curto.

Ratificando o que foi dito anteriormente, a orientação que os contadores devem dar para seus clientes é a seguinte: Se não quiser ter cargas apreendidas nos postos de fiscalização, o empresário deve observar a legislação estadual de destino ou apresentar cópia de mandado de segurança afastando a cobrança do Difal. E Mandado se Segurança custa dinheiro. Daí, que, se a previsão de custo financeiro envolvendo Difal for pequena, é mais barato cumprir as legislações estaduais. Agora, se a empresa avaliar que o custo com advogados irá compensar o custo tributário com Difal, então ela deve buscar os Mandados de Segurança. Isso nos faz lembrar que 99% dos contadores estão preocupados à toa, já, que, aqui no Amazonas, existem poucas empresas de comércio eletrônico ou que operem altíssimos volumes de mercadorias para pessoas físicas localizadas fora do Estado.

Lembramos ainda que a instituição do Difal pela EC87/2015 trouxe um pouco de justiça fiscal para os Estados consumidores. A cobrança, tal qual vinha acontecendo até o final de 2021 era mais do que justa. O embaraço está no rito legal. O problema está no cumprimento do ordenamento jurídico e das competências tributárias. O nosso legislador, principalmente o estadual, não gosta de ritos nem de formalidades. Esse é um dos motivos da existência de 80 milhões de processos em tramitação, e por volta de R$ 5,4 trilhões presos no contencioso tributário; dinheiro esse, que deveria está nos cofres da União, Estados e Municípios. O efeito colateral dessa deformidade social recai sobre os pequenos na forma de confisco travestido de taxações elevadas.

A confusão normativa não é casual nem acidentada; tudo é meticulosamente desenhado para favorecer poderosos grupos de interesse. Essa coisa de o presidente deixar a publicação da LC190 para 2022 cria uma sensação de manipulação com objetivos sombrios. Um teórico da conspiração poderia dizer, de modo leviano, que as eminências pardas trabalharam intensamente para chegarmos a esse estado de desorientação jurídica. Toda confusão tributária beneficia alguns e prejudica a maioria.

Uma observação curiosa: Apesar dos números astronômicos do contencioso fiscal, nós não temos uma cultura litigiosa de amplo espectro (parece até coisa de remédio; remédio para curar as nossas enfermidades fiscais). O empresário pequeno e médio não costuma lutar pelos seus direitos de contribuinte. Um gritante exemplo está nas infinitas e persistentes cobranças indevidas efetuadas pela Sefaz/AM, que acontecem a todo minuto e que ficam por isso mesmo. Eu, Reginaldo, já tive contato com situações cabeludíssimas, onde o contribuinte ficou quieto. O advogado tributarista, Doutor Eduardo Barroso @eduardojorgebarooso, lembra que o Direito existe para defender a todos os contribuintes, pequenos ou grandes. É preciso então quebrar o paradigma de que a Justiça só cabe aos ricos. É necessário também, desmistificar o arquétipo incrustado na cabeça do pequeno empresário de que advogado é caro. O pequeno deve, ao menos, consultar viabilidades jurídicas para determinadas questões que afligem seus negócios.

Para fechar esse assunto, lembro aqui do posicionamento do advogado, Doutor Pedro Lunardelli, que, numa reunião da FGV tempos atrás, disse que vivemos uma crise de legalidade; que no Brasil, a ilegalidade vale a pena https://bit.ly/3qAC0as . O Doutor Pedro sugere, inclusive, a extinção do Confaz. Diz ainda que a efetivação de uma verdadeira reforma tributária deveria prever punição para o agente público que editasse norma invalidada por tribunais superiores. Ou seja, toda cobrança julgada indevida por um tribunal colegiado incorreria na punição severa dos agentes que assinaram o dispositivo; o alvo da punição seria a pessoa física que assinou e não a instituição pública. Inclusive, isso já acontece de certa forma com alguns gestores municipais. Podemos tomar o seguinte exemplo: O assaltante rouba o celular do transeunte. Já, o agente da Sefaz de Pernambuco cobrou R$ 3.600 sobre uma impressora plotter vendida por uma empresa amazonense do Simples Nacional. Esse agente da Sefaz pernambucana sabia que a cobrança era indevida, mas mesmo assim exigiu o pagamento. Pergunta-se o seguinte: quem é mais bandido, o assaltante ou o agente fiscal? Mas há situações ainda piores, onde o assaltante invade a casa, mata o dono e rouba seu patrimônio. Paralelo a essa situação, o auditor fiscal invade a empresa, aplica uma multa milionária que leva à morte do empresário, e lá na frente os filhos conseguem provar na Justiça que a cobrança era indevida. Detalhe perturbador: o agente público não responde por nadica de nada.

O agente fiscal brasileiro tem carta branca para cometer ilegalidades. É uma espécie de 007 tributário: tem licença para matar o contribuinte. Inclusive, o pessoal da fiscalização é o mais intragável da Sefaz; eles são beligerantes e cada palavra dessas criaturas dantescas possui uma densa carga de ameaças. Mas a coisa é desse jeito porque o próprio contribuinte deixou que a chegássemos a esse ponto de total ausência de freios. Por conta desse ostensivo e consolidado modelo de impunidade, algumas empresas podem muito bem cooptar auditores fiscais para criar embaraços nos concorrentes. Essa realidade tenebrosa deixa no ar, uma sensação de que o Brasil é uma grande máfia avalizada pela estrutura jurídico institucional. Curta e siga @doutorimposto

























Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sua mensagem será publicada assim que for liberada. Grato.