Publicado no Jornal do Commercio dia 09/10/2012 - A98
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O
Direito existe para proteger o cidadão, mas quem vai proteger o cidadão do
Direito? A força bruta do tempo da barbárie foi substituída pela força do
Direito – pela força de uma violência coletiva imposta pelos vencedores aos
vencidos. A brutalidade da Lei pode até não chocar a sociedade pela maneira ardilosa
que é aplicada, mas os efeitos perversos e avassaladores destroem famílias,
comunidades e empresas. Essa mesma brutalidade protege o embusteiro, o tirano e
o corrupto. E tudo é feito de forma a induzir o cidadão a acreditar no
enigmático Estado de Direito. O processo acontece de modo a evitar que muito
sangue seja jorrado do lombo chicoteado, visto que a sujeira poderia perturbar
o senso coletivo de dignidade. O objetivo é abafar o sofrimento com o manto da
legitimidade para assim preservar o ideário de que não somos selvagens como os
lobos nem infames como os ratos.
O
cidadão comum cresce com a noção de que está protegido pela Justiça, mas lá no
fundo uma perturbadora voz lhe diz que isso é privilégio dos poderosos. Mesmo
assim, esse dito cidadão insiste em se enganar; insiste na convicção de que o
sistema funciona para todos. Na realidade, o que acontece é que muitos procuram
se agarrar a alguma crença para não afundar na desesperança. Talvez por isso as
igrejas estejam lotadas de gente em busca de refúgio e de alento.
O
nosso sistema jurídico é engenhosamente programado para não funcionar, para incutir
na alma do cidadão o absoluto senso de descrença na sua eficácia. Um bom
exemplo são os pleitos que questionam a legitimidade das confusas,
impraticáveis e asfixiantes normas tributárias. Tempos atrás uma grande empresa
do nosso polo industrial local teve o seu direito reconhecido pela alta corte
do país de não pagar PIS/COFINS sobre suas vendas internas. A reação de muitas
outras empresas foi também pleitear junto a Justiça um benefício semelhante. A
maioria declinou da ideia quando soube que na melhor das hipóteses seria
preciso esperar dez anos para obter uma decisão favorável. Esse exemplo ilustra
muito bem a tal engenhosidade aqui tratada. Ou seja, o cidadão sabe que o
monstruoso volume de tribunais, varas, comarcas, juízes, advogados etc., não é
capaz de trazer as decisões judiciais para o curto ou médio prazo. Quantas e
quantas pessoas morrem aguardando uma decisão da Justiça? E que se faz para
corrigir isso? Muito discurso e nada de resultado prático.
O
ensaísta francês Montaigne disse que o próprio Direito tem Ficções Legítimas
sobre as quais ele funda a verdade da sua justiça. É o que acontece no sistema
de substituição tributária do ICMS: presunção e ficção são transformadas em
fatos, que geram obrigação, que geram punição. É a mesma coisa que uma pessoa
ser presa e condenada por um crime que não aconteceu. A imaginação delirante do
nosso legislador criou uma lógica metafísica que desafia a mais ousada das
correntes filosóficas. Por mais atrevido que fosse, nenhum doutrinador seria
capaz de propor a ideia de o servo entregar parte da colheita ao senhor da
terra antes da semeadura. Seria o mesmo que convencer alguém sobre o absurdo de
que a chuva sobe em vez de cair. Pois é! Por incrível que pareça o nosso
legislador fez isso. O argumento utilizado para justificar tamanha perversão foi
o tal princípio da Praticabilidade, que não é senão uma das tais Ficções
Legítimas transformada em fato.
Como
a própria sigla diz, o ICMS incide sobre a circulação de mercadorias, que gera
débito, que deduzido do crédito das aquisições resulta no valor a recolher ao
erário. Na modalidade de substituição tributária o ICMS é cobrado sobre a não
circulação de mercadorias. O imposto é cobrado sem que o fato gerador tenha
acontecido. A própria essência primeira, justificadora da criação do ICMS foi
destruída e no seu lugar foi colocada uma coisa absolutamente transcendental. E
o valor cobrado antecipadamente é alto: mais de um quinto do valor da
mercadoria deve ser pago de imediato. Isso até lembra o tão absurdo quinto dos
infernos que hoje é apenas um dos mais de cinquenta tributos cobrados no
Brasil.
De
início, foram criadas as figuras do substituto, que era o fornecedor da
mercadoria; e o substituído, que era o comerciante adquirente. O fornecedor
fazia papel de Fisco ao cobrar do adquirente o imposto sobre uma presumida
venda que poderia até nem acontecer. Não satisfeito, o legislador perverteu o
próprio pervertido regime de substituição tributária. Isso ocorreu quando o
legislador criou a substituição tributária interna, fato que eliminou a figura
do substituto tributário. Nesse regime, o imposto é cobrado pela própria SEFAZ,
que assumiu o papel de substituto tributário, ficando claro que a operação
fiscal é na realidade uma antecipação definitiva e não uma operação de
substituição tributária.
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