Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 01/07/2014 - A176
A
igreja medieval era detentora dum poder absurdamente esmagador. Tanto, que o
império papal chegou a controlar um terço das terras cultiváveis da Europa
Ocidental, sendo assim o grande “senhor feudal” da sua época. Seus
inquebrantáveis cânones eram sustentados por dogmas estabelecidos diretamente
pelo poder divino, cabendo aos humanos uma cega e inquestionável devoção.
As
regras vigentes num dado momento eram eternas e oriundas do texto bíblico.
Portanto, claras como um cristal. Lá pelas tantas, algum tipo de rebuliço
circunstancial obrigava determinada autoridade eclesiástica a promover
modificações na doutrina, sendo o novo preceito uma representação fidedigna da
vontade dos céus.
A
persistente intervenção do imperador Oto I nos assuntos eclesiásticos levou o
papa Gregório VII a instituir o celibato dos sacerdotes. Tal decisão concorreu
para preservação do poder da igreja e a consequente defesa do seu patrimônio.
Dessa forma, o celibato passou a ser algo natural e sagrado, como se tivesse
nascido junto com o catolicismo.
O
instituto do matrimônio, bem como a ordem centralizadora de Roma eram causas
primárias da fé cristã. Mesmo assim, o Ato de Supremacia do parlamento inglês quebrou
essa pedra angular numa só tacada. A nova doutrina estabelecida pelos céus
permitiu o segundo casamento do rei Henrique VIII e ainda lhe conferiu o título
de Chefe da Igreja Cristã. Consequentemente, os opositores dessa nova ordem
foram executados por violação da sacrossanta crença recém-estabelecida.
Assim
como acontece na dimensão religiosa, carecemos também de uma doutrina objetiva no
sistema tributário. Precisamos ser convictos da solidez do terreno em que
estamos pisando e ao mesmo tempo é fundamental que tenhamos em mãos um mapa
normativo bem desenhado. Especificamente, no caso brasileiro, a Constituição
Federal e o Código Tributário Nacional deveriam ser vistos como balizadores
capazes de conferir um grau mínimo de segurança jurídica no campo tributário. Não
é bem o que acontece. Na realidade, os nossos princípios tributários mais se
parecem uma colcha de retalhos cheia de buracos e indefinições. Por isso é que
nos momentos de impasse tais princípios mais atrapalham do que ajudam a
pacificar conflitos normativos. Pior ainda, todo o nosso sistema jurídico é
frágil. Isso ficou bem claro no episódio do Mensalão, que mostrou o quão
vulneráveis são os nossos fundamentos jurídicos diante da força de certos
grupos políticos.
Outro
fato preocupante é a prática recorrente do poder executivo, de mandar pras
cucuias determinados fundamentos normativos ao criar ou majorar tributos. Esse
tipo de procedimento é bem a cara daquele governante desprovido de formação
educacional mínima para ocupar cargos públicos relevantes. O enredo é sempre o
mesmo: Quando o dinheiro passado por diversos filtros propinolísticos não é
suficiente para a execução de obras eleitoreiras, cria-se da noite para o dia
uma maluquice normativa capaz de gerar fundos suplementares ao erário. Em
seguida, joga-se no peito dos doutrinadores a responsabilidade de “legalizar” a
bandalheira. Paralelamente, os mais eruditos juristas e pensadores começam a construir
uma aura divina em torno da flagrante ilegalidade tributária. Obviamente, tanto
esforço não convence a ninguém, mas mesmo assim fica garantida a sucessão de
espetáculos demagógicos materializados nas decisões administrativas e
judiciais.
Esse
quadro dantesco pode ser resumido da seguinte forma: Legisladores e juristas
das mais altas castas constroem lindas estruturas conceituais, perfeitamente
alinhadas com as melhores práticas adotadas nos principais sistemas legais do
mundo. Em seguida, como um elefante desengonçado na loja de cristais, os
insensatos comandantes do governo resolvem detonar essas ditas estruturas
conceituais. Foi assim com a EC 3/93, que virou pelo avesso o conceito de Fato
Gerador ao constitucionalizar o regime de Substituição Tributária do ICMS. Quem
acessar a Seção II do CTN pode contar 50 vezes o termo “revogado” nos seus sete
artigos. Isso dá a dimensão do quanto sofre o pobre do ICMS nas mãos do
legislador. E olha que a Seção II do Código Tributário Nacional é apenas um
guia orientador das 27 legislações estaduais que regulamentam o Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços. Ou seja, os princípios fundamentais do
ICMS já foram revogados 50 vezes. Pode-se considerar tanto mexe e remexe de
princípio fundamental? Os desarranjos se sucedem, como o emaranhado caso do
Finsocial/Cofins, taxa de internamento da Suframa e vários outros mais.
Tanta
maluquice faz a delícia da vida dos advogados e ao mesmo tempo promove um clima
de terror nos tribunais, entupidos até o teto de ações tributárias. Assim, desprovidos
de princípios tributários mínimos, somos obrigados a dormir, acordar, almoçar e
jantar com a insegurança jurídica grudada no nosso cangote. E a balbúrdia
generalizada só tende a crescer com o passar dos anos.
O
comediante Groucho Marx já dizia: “Estes são os meus princípios. Se você não
gostar deles, eu tenho outros”.
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