Reginaldo de Oliveira
Publicado no Jornal do Commercio dia 18 / 11 / 2016 - A275
Taxada
de quarto poder, a grande e poderosa mídia tradicional se acostumou com a
prática de estabelecer padrões de comportamento aos incautos membros duma
sociedade alienada. A televisão, por exemplo, atuava como uma habilidosa
dançarina que conduzia o parceiro aos quatro cantos do salão sem que ele
percebesse a manigância. Daí, a justificativa do exorbitante custo publicitário
para adentrar nos ambientes familiares. Quem desembolsava mais dinheiro,
conquistava mais corações. Ergueram-se assim os impérios políticos e
capitalistas, que fizeram gato e sapato das consciências daqueles que só
conseguiam enxergar um lado da verdade. Pois bem. A bomba atômica da internet
espatifou esse paradigma aparentemente indestrutível. Agora, as verdades são multifacetadas
– um autêntico caleidoscópio. Fato subsequente, o congelante torpor se esvaiu
da alma do cidadão comum, que acordou para uma realidade áspera e beligerante. Ou
seja, cortinas caíram, máscaras derreteram e a velha moral se fragilizou. Todo
o aprendizado sobre valores e condutas encerrava um dogmatismo maniqueísta que atormentava
as pessoas com dilemas variados. O foco era exageradamente restrito.
O
fenômeno é mundial. E o espanto também. Ganha força, uma onda de
descontentamento em relação às autoridades constituídas. A eleição do
espalhafatoso Donald Trump apanhou todos no contrapé (o improvável aconteceu). Indagações
persistentes transpassaram cabeças atordoadas de gente das mais variadas
nacionalidades. Por que então os acontecimentos não seguiram o script
convencional? Tudo estava prontinho para a posse da experiente Hillary Clinton,
que atendia a todos os requisitos do candidato padrão. Seu oponente republicano
era um completo antagonista dos modelos estabelecidos, que rompia convenções e
desconstruía a postura do politicamente correto. Como interpretar um cenário
tão surreal?
Análises
mais detalhadas do processo eleitoral indicaram uma população decepcionada com
o sistema político americano. A candidata democrata encarnava tudo o que de
mais censurável acontecia nos bastidores das relações incestuosas entre o
público e o privado. Relatos suspeitíssimos de tráfico de influência estão vinculados
a cifras astronômicas que tufaram os bolsos da família Clinton. O pragmatismo
econômico e o lobby persistente se entranharam nos assuntos oficiais quando a
senhora Hillary ocupava o alto escalão do governo. A confusão dos e-mails
processados fora do sistema oficial só ratificava a suspeita de ações
reprováveis. Outra queixa da população excluída dos ganhos fartos está na
soberba das elites aristocráticas que desprezam os menos favorecidos. A
candidata democrata simboliza essa classe dominante pelo seu visceral
relacionamento com os banqueiros de Wall Street. O candidato Trump não era um
político profissional e, portanto, não estava impregnado com os pecados do
poder. O senhor Donald dizia aquilo que as pessoas pensavam, mas temiam
expressar em palavras. No final, as caixas de ressonância funcionaram
direitinho.
O
Brexit inglês e o “Não” colombiano colocaram em xeque o ideal democrático.
Talvez, porque esse dito ideal nasceu e floresceu num ambiente de manipulação.
Muitos não querem admitir, mas não há como negar a existência duma crescente
tensão social (a velha luta de classes). Só que agora se forma uma espécie de
levante. O pobre marginalizado não vê motivos para defender a estabilidade da elite
aristocrática. E as redes sociais têm papel fundamental nesse processo. Por
isso é que vez por outra um magistrado doido manda bloquear esses canais de
interatividade, visto que uma população esclarecida é o pesadelo maior do
opressor. O lado perverso desse jogo social está na exacerbação de conflitos e
na intensificação de atos preconceituosos. E, claro, toda essa miscelânea se
apresenta como um prato cheio para os populistas de plantão. O Trump de hoje pode
ser o Bolsonaro de amanhã; ou o Tiririca de 2018.
Nós
já provamos um pouco do veneno quando metade da população não concordou com os
resultados das urnas. A consequência do imbróglio se traduziu num longo e
doloroso processo de impeachment. O pior é que a mudança de comando não aliviou
a percepção negativa que a população tinha dos políticos e de toda a
administração pública. Desapontamento e raiva fermentam no peito do brasileiro
numa intensidade ainda maior. Enquanto isso, a politicada não larga mão dos
esquemas de sempre. Parece que o limiar duma revolução moralizadora só fomenta
a roubalheira. É preciso fazer o pé-de-meia antes de a coisa toda explodir em
milhões de fragmentos democráticos.
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